Felca e o Cidadão-Narrador: Nova Ágora Digital | Análise 2025

Como um orador improvável da era digital pautou o país sobre a proteção infantil

Figura de costas com cabelos longos observa uma tela do YouTube com o vídeo 'Adultização' de Felca, enquanto uma plateia de manequins com cabos na cabeça assiste em uma sala escura.

Antigamente, a ágora grega era o espaço onde se discutiam leis, guerras e o destino da cidade. Mas não era um lugar para todos: só cidadãos homens, livres e nascidos na pólis podiam falar. Ao longo da história, sempre houve critérios para se ocupar a tribuna: riqueza, posição social, filiação política, acesso a círculos de poder.

Hoje, nossa ágora é digital. E a pergunta é: quais são os critérios para ter voz nesse novo espaço público?

O episódio do vídeo “Adultização“, de Felca, mostra que esses critérios mudaram radicalmente. Para falar e ser ouvido na nova ágora, não é preciso sangue nobre nem crachá institucional. É preciso algo mais difícil de fabricar: narrativa relevante, autenticidade percebida e curiosidade verdadeira.

O Orador Improvável

Antes, subir na tribuna exigia credenciais específicas: diploma, cargo, filiação partidária, acesso a círculos de poder, ou pelo menos um microfone emprestado por quem os possuía. A autoridade vinha de fora, era conferida por instituições que funcionavam como filtros de legitimidade.

Felca representa uma ruptura completa dessa lógica que vinha se desenhando há anos.

Ele não é político, nem jornalista investigativo, nem ativista de carreira. Até pouco tempo atrás, era conhecido por vídeos de humor, memes e comentários ácidos sobre a cultura pop e a vida online. Para os padrões antigos, não teria “perfil” para abrir um debate nacional sobre políticas de proteção infantil.

Mas justamente por não ser moldado para o palco tradicional, ele se encaixa perfeitamente no palco digital. Tem fobia social e traços autistas, o que o afasta do estereótipo do orador carismático. Encontrou um jeito próprio de falar, com ritmo, humor e timing que são dele. Move-se pela curiosidade genuína – ele mesmo já disse que “não sabe se é muito curioso, mas se interessa por tudo”.

Na nova ágora, essas características não são barreiras; são credenciais. Sinalizam que a voz não está sendo “produzida” para agradar um partido, um patrocinador ou uma instituição. E é essa percepção de autenticidade que sustenta a autoridade – não mais imposta de cima, mas validada de forma difusa pela própria audiência.

A Pauta que Nasceu de Dentro

O caso “Adultização” nos confronta com uma realidade brutal: crimes contra crianças que sempre existiram, mas que agora encontram na arquitetura digital novos espaços para se manifestar. A gravidade dessa denúncia é incontestável e deve ser o centro de qualquer análise sobre o tema.

Mas há também uma dimensão sociológica fascinante: de onde essa pauta emergiu e como se propagou.

Os crimes acontecem na vida real de crianças reais. A internet funciona como a nova praça pública onde esses abusos se manifestam – os novos becos escuros, as novas esquinas onde predadores sempre procuraram suas vítimas. A investigação foi feita na internet. A denúncia foi publicada na internet. Mas o efeito transbordou completamente: chegou ao Jornal Nacional, mobilizou o Congresso, forçou debates em empresas de tecnologia, gerou projetos de lei.

Não foi um caso de mídia tradicional que trouxe à tona algo que todos já sabiam ou suspeitavam. Foi uma questão de colocar uma luz inescapável no problema, forçar nossa atenção coletiva para aquilo que preferíamos não ver – quase como em “Laranja Mecânica”, quando não há mais como desviar o olhar.

Uma pauta nativa do ambiente digital se impôs a todo o ecossistema político e midiático tradicional. Isso sugere uma realocação fundamental do poder de agenda: não são mais apenas editores, produtores e políticos que decidem sobre o que se fala; qualquer pessoa com capacidade narrativa e autenticidade percebida pode forçar uma conversa nacional.

A Arquitetura que Fez a Voz Ecoar

Ter voz na nova ágora é uma coisa; fazer essa voz reverberar é outra completamente diferente. E aqui entra a engenharia emocional por trás do vídeo “Adultização”.

Felca não começou com o impacto mais pesado. Começou com o bizarro.

Sua abertura focava nos “empresários mirins”, aquelas crianças que viralizavam com pequenos negócios e discursos empreendedores precoces. Para muitos de nós, já havia algo perturbador naqueles vídeos, mas eles circulavam como curiosidade, entretenimento, até inspiração. O público chegou esperando mais uma análise da cultura digital brasileira.

O que ele construiu foi um funil emocional: uma jornada cuidadosamente arquitetada que leva o espectador do desconforto inicial à consciência plena do horror. Essa descida gradual é fundamental porque prepara a audiência para absorver informações que, apresentadas de forma direta, poderiam gerar rejeição imediata.

O momento mais potente foi a demonstração prática do que ele chamou de “Algoritmo P”. Ao criar contas de teste “limpas” e mostrar como os sistemas de recomendação, em questão de minutos, começavam a sugerir conteúdo progressivamente mais problemático envolvendo crianças, Felca transformou um conceito abstrato em experiência concreta.

Não se tratava mais de “acreditar” no que ele dizia. O público viu acontecer. E isso muda tudo: quando uma denúncia vem acompanhada de prova visual e reproduzível, ela ganha um peso persuasivo muito superior a qualquer argumentação puramente verbal.

O Impacto e a Disputa de Vozes

O vídeo construiu para Felca uma credibilidade robusta porque ele fez mais que denunciar: agiu. Protocolou queixas formais nos órgãos competentes, doou parte significativa da receita do vídeo para instituições de proteção infantil, mobilizou recursos jurídicos. Manteve coerência entre discurso e prática.

Mas será que isso realmente abalou as estruturas que protegem esses crimes? Alguns perfis foram desativados, investigações avançaram, parcerias comerciais foram canceladas. Houve movimentação visível. Mas o que a sociedade vai fazer a longo prazo? Como as plataformas vão reagir quando a atenção diminuir? Como vamos vigiar e punir os criminosos de forma consistente? Ou será que eles continuarão com seus sussurros cúmplices, esperando que a indignação passe?

A reação imediata foi previsível: ameaças, tentativas de desqualificação, contra-narrativas que tentavam reescrever a história como exagero ou perseguição. No fundo, assistimos a uma disputa essencial de vozes na nova ágora: o sussurro cúmplice que explora, esconde e normaliza versus o grito transparente que denuncia, prova e mobiliza.

Por ora, o grito foi mais alto. E a reverberação comprovou que, quando bem conduzida, uma narrativa nativa digital pode competir de igual para igual com qualquer manchete, editorial ou pronunciamento institucional. Mas a durabilidade dessa vitória ainda está por ser testada.

Estamos Vendo Nascer o Cidadão-Narrador?

O fenômeno Felca nos faz questionar: estamos assistindo ao surgimento de algo novo? Será que podemos falar em “cidadão-narrador” – alguém que, sem vínculos institucionais tradicionais, consegue pautar debates nacionais através da combinação entre investigação rigorosa, narrativa convincente e ação coerente?

Ou é cedo demais para essas generalizações? Talvez Felca seja uma exceção, não uma regra. Talvez a confluência de fatores que tornou possível seu impacto seja difícil de replicar.

O que sabemos é que algo mudou nos critérios de credibilidade. Na nova ágora, importa menos de onde você vem e mais para onde você leva a conversa. Importa menos seu cargo e mais sua curiosidade. Importa menos sua filiação e mais sua coerência.

Essa transformação tem implicações profundas para como construímos nossa narrativa coletiva. Se a autoridade se democratiza, se o poder de agenda se distribui, se qualquer cidadão com capacidade narrativa pode forçar uma discussão nacional, então talvez estejamos assistindo a uma reconfiguração dos mecanismos pelos quais definimos nossos valores, nossa ética, nossa história.

Claro, isso traz riscos: a mesma lógica que permite denúncias legítimas também pode amplificar desinformação, teorias conspiratórias e ataques descoordenados. Mas também traz oportunidades: vozes antes silenciadas podem emergir, temas antes negligenciados podem ganhar centralidade, e a agenda pública pode se tornar mais permeável aos anseios reais da sociedade.

A Pergunta que Permanece

Talvez estejamos vendo um dos primeiros capítulos do colapso das máscaras que protegem abusos digitais. O caso “Adultização” provou que crimes que acontecem nas sombras algorítmicas podem ser expostos na luz da praça pública digital.

Mas isso nos deixa com uma pergunta fundamental: quem vai dominar a nova ágora?

Aqueles que usam o silêncio e a opacidade para proteger interesses questionáveis, ou os que usam a transparência e a narrativa para confrontar abusos? Os que sussurram nos algoritmos para explorar vulnerabilidades, ou os que gritam nas redes para defendê-las?

A resposta não depende apenas da tecnologia ou da regulação. Depende de quantos outros estarão dispostos a fazer o que Felca fez: investigar com rigor, narrar com honestidade e agir com coerência.

Porque na nova ágora, assim como na antiga, a construção de uma sociedade ética não é um sistema que funciona sozinho. É uma prática que exige participação ativa de quem acredita que algumas vozes devem ser ouvidas, mesmo quando – especialmente quando – incomodam quem preferiria o silêncio.

A verdadeira revolução não acontece quando mudamos o que pensamos, mas quando mudamos como pensamos. E talvez, na era digital, isso signifique aceitar que a autoridade narrativa pode emergir dos lugares mais improváveis, desde que venha acompanhada de algo cada vez mais raro: coragem para falar verdades desconfortáveis em voz alta.

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