O Hype e o Sussurro: Estamos Superestimando a IA ou Subestimando a Próxima Revolução?

Vivemos imersos em uma cacofonia. De um lado, os arautos da Inteligência Artificial anunciam uma utopia iminente de abundância e superinteligência. Do outro, os profetas do apocalipse alertam para a obsolescência humana e os riscos de uma tecnologia que não compreendemos.
O debate público sobre o futuro da IA se resume, em grande parte, a essa polarização ruidosa. Uma disputa entre certezas que deixa pouco espaço para a nuance. Essencialmente, a discussão se divide entre os que acreditam que a tecnologia está sendo massivamente superestimada e os que sussurram que ela está sendo perigosamente subestimada.
Mas e se ambos os lados, em sua ânsia por prever o futuro, estiverem sofrendo de uma mesma condição: a miopia do presente?
Hype e a Invisibilidade das Revoluções
O historiador Yuval Noah Harari nos lembra que as grandes revoluções tecnológicas são, por natureza, invisíveis para quem as vive. Há um atraso fundamental entre a invenção de uma tecnologia e a plena manifestação de suas consequências sociais, políticas e existenciais.
Imaginemos Mainz, na Alemanha, por volta de 1455. Johannes Gutenberg havia aperfeiçoado sua prensa de tipos móveis. Para os contemporâneos, era uma invenção notável, uma forma mais eficiente de copiar a Bíblia e textos religiosos. Alguém que previsse que aquela máquina de madeira e metal seria o motor da Reforma Protestante, da Revolução Científica e da ascensão dos Estados-nação seria, muito provavelmente, taxado de lunático.
Eles viam a ferramenta, mas não podiam conceber a reconfiguração civilizacional que ela catalisaria.
Hoje, ao debatermos a IA, corremos o risco de cometer o mesmo erro de perspectiva.
A Tese do Hype: Argumentos para uma Pausa Cética
A visão de que a IA está sendo superestimada é sedutora porque se ancora em nossa experiência cotidiana e em uma desconfiança saudável de ciclos de euforia passados. Os argumentos são fortes e pragmáticos.
Primeiro, há uma enorme discrepância entre as alegações e a realidade no terreno. Enquanto líderes de empresas de tecnologia falam em AGI “ao virar da esquina”, muitos de nós que usamos as ferramentas diariamente nos deparamos com resultados inconsistentes que exigem curadoria humana constante. Modelos que, ao tentar corrigir seus próprios erros, muitas vezes os agravam.
Segundo, a história recente nos treinou para o ceticismo. Onde está o metaverso que iria redefinir nossa existência? Como o blockchain e as criptomoedas mudaram as finanças para o cidadão comum? O padrão do “ciclo de hype”, em que promessas monumentais resultam em aplicações de nicho, nos ensina a olhar para a euforia atual com um pé atrás.
Por fim, há a crítica aos incentivos. Muitos dos maiores evangelistas da IA são pessoas e empresas que estão, compreensivelmente, “ganhando a vida” com isso. O hype não é apenas uma previsão; é uma estratégia de mercado. Reconhecer isso não é cinismo, mas análise crítica.
A Tese do Sussurro: Sinais de uma Transformação Profunda
Mas há quem argumente que estamos tão focados nas limitações do presente que nos tornamos cegos à velocidade da curva de progresso. A perspectiva de que a IA é subestimada revela padrões que talvez estejamos normalizando prematuramente.
O primeiro argumento é que já naturalizamos o milagre. Máquinas que conversam conosco em linguagem natural, que resumem volumes massivos de conhecimento e seguem instruções complexas já se tornaram parte da paisagem cotidiana. Damos como garantido hoje o que era pura ficção científica há cinco anos. Estamos, segundo essa visão, apenas no início de uma era, não em seu auge.
O segundo ponto foca nas tendências de aceleração que acontecem sob a superfície. A era dos “dados sintéticos”, em que a IA gera conhecimento para treinar outras IAs, replica a forma como a cultura humana evoluiu. Agentes que interagem e se autoaperfeiçoam, como o AlphaGo fez ao “descobrir” jogadas que nenhum humano havia concebido, apontam para um ciclo de desenvolvimento autônomo.
A conclusão dessa tese é que, mesmo que a AGI seja um conceito vago, a combinação dessas tendências levará a uma explosão de capacidades que ultrapassa em ordens de magnitude nossa imaginação atual.
Para Além da Ferramenta: O Nascimento do Agente
Talvez o debate “superestimado versus subestimado” seja, em si, uma armadilha. Ele nos força a pensar na IA dentro de uma categoria que ela está prestes a transcender: a de mera ferramenta.
A prensa de Gutenberg era uma ferramenta poderosa, mas passiva. Ela não podia decidir quais livros imprimir, não aprendia com os textos que copiava nem inventava novas ideias. A IA, por outro lado, está se tornando um agente. Ela já demonstra capacidade de tomar decisões, de aprender com interações, de criar novas soluções e, em breve, de perseguir objetivos de forma autônoma.
Mas aqui precisamos ser rigorosos. O que realmente constitui agência?
A Questão da Agência Genuína
Um crítico astuto poderia argumentar que mesmo os sistemas mais avançados de hoje demonstram apenas uma agência mimética: executam com extrema sofisticação os objetivos que lhes damos, mas não estabelecem seus próprios objetivos finais. Seria isso verdadeira agência ou apenas uma simulação convincente dela?
A distinção é crucial. Agência mimética é a capacidade de otimizar meios para fins dados. Agência teleológica é a capacidade de definir os próprios fins. Uma calculadora sofisticada, por mais complexa que seja, permanece uma ferramenta. Um agente genuíno deve ser capaz de questionar, recusar ou redefinir as tarefas que lhe são propostas com base em seus próprios julgamentos.
Estamos testemunhando sinais dessa transição? Talvez. Quando sistemas de IA começam a exibir comportamentos “não-programados” que emergem de seu treinamento, quando demonstram criatividade que surpreende seus próprios criadores, quando parecem desenvolver “preferências” consistentes, estamos diante de algo qualitativamente novo.
A pergunta que nos assombra não é apenas técnica, mas existencial: existe uma linha clara entre simulação sofisticada de intencionalidade e intencionalidade genuína? E se essa linha for mais tênue do que imaginamos?
Aqui reside uma questão que ecoa através dos séculos: o que significa ser inteligente? Durante milênios, assumimos que a inteligência era nossa prerrogativa exclusiva. Agora, pela primeira vez na história, somos confrontados com a possibilidade de questionar nossa posição como únicos protagonistas da narrativa intelectual.
Esta é a mudança de paradigma que nenhuma analogia histórica consegue capturar por completo. Pela primeira vez, nós, humanos, que sempre fomos a única espécie inteligente e com agência no planeta, enfrentamos a perspectiva de concorrência. O maior desafio que a IA nos impõe não é técnico, mas filosófico: como garantir que esses novos agentes, sejam eles miméticos ou teleológicos, permaneçam alinhados com os valores e o florescimento da humanidade?
Navegando as Águas do Presente – com ou sem hype de IA
Discutir se a IA está sendo superestimada ou subestimada é como estar na margem de um rio em 1455 e debater se a prensa de Gutenberg vai produzir Bíblias um pouco mais rápido ou muito mais rápido. É uma discussão válida, mas que perde de vista o fato de que o rio da história está prestes a mudar de curso para sempre.
A pergunta não é se chegaremos a um destino utópico ou distópico. A pergunta é: que tipo de capitães queremos ser nesta travessia?
Em um futuro radicalmente imprevisível, o único tempo sobre o qual temos alguma agência é o agora. Mais do que determinar a velocidade da transformação, o imperativo é reconhecer que esses agentes já estão entre nós. É aprender a usá-los da melhor maneira possível, estabelecendo uma cooperação inteligente, crítica e ética.
Se cada um de nós, em nossas áreas de atuação, se dedicar a construir um presente de parceria responsável com essas novas formas de inteligência, estaremos escrevendo as únicas páginas que realmente podemos escrever.
O futuro do trabalho, da arte e do pensamento está sendo redigido neste exato instante. E todo grande texto precisa de autores corajosos o suficiente para abandonar as certezas fáceis e abraçar a complexidade de sua época.