No Kings: Quando as Ruas se Lembram do Espírito Democrático

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No Kings: Quando As Ruas Se Lembram Do Espírito Democrático 2

O som que ecoa hoje, 14 de junho de 2025, pelas ruas dos Estados Unidos, parecia adormecido sob o peso da polarização e do cansaço cívico. De Boston a Los Angeles, de Seattle a Miami, milhões de vozes entoam um refrão de apenas duas palavras, mas que carrega em si todo o peso de uma fundação: “No Kings”.

Sem Reis.

É a resposta natural, humana e visceralmente democrática a um outro tipo de espetáculo que tentou projetar força autoritária em Washington. Onde tanques e uniformes marcharam para celebrar um homem, cidadãos marcham para defender uma ideia.

E neste contraste — entre a parada militar e a pulsação das ruas, entre o aço do poder e a voz da convicção — emerge algo mais profundo que resistência política. Emerge um lembrete de que a democracia não é um monumento de pedra a ser admirado à distância, mas um organismo vivo que só existe quando alguém se recusa a dobrar os joelhos.

O Roteiro que Não Queríamos Reconhecer

Confesso: como tantos observadores, assisti aos eventos americanos de 2025 com crescente incredulidade. O ataque sistemático a instituições, a relativização da verdade, a politização das forças armadas: tudo parecia pertencer a um roteiro distópico, não ao noticiário do país que se apresentava como estandarte do mundo livre.

A velocidade da erosão nos pegou de surpresa. Mas talvez o erro não tenha sido de previsão, mas de imaginação. Fomos incapazes de imaginar que o improvável se tornaria, tão rapidamente, nossa realidade.

E aqui mora uma pergunta incômoda: nós não enxergamos o que estava acontecendo, ou, no fundo, não acreditamos que fosse possível? Talvez o maior perigo não seja o autoritário que anuncia suas intenções, mas nossa própria relutância em levar a sério a ameaça que ele representa, tratando a erosão da norma como mero “teatro político”.

A Arrogância das Métricas e a Cegueira dos Números

Parte de nossa surpresa coletiva reside em nossa fé ingênua nos números. Até pouco tempo, relatórios respeitados e índices como o “Democracy Index” da The Economist, embora apontassem para uma “democracia falha”, ainda classificavam os Estados Unidos como institucionalmente robusta.

Medíamos a saúde do corpo democrático pela força de seus ossos — a Constituição, as eleições, as leis — e esquecíamos de auscultar seu coração: a cultura cívica, a confiança mútua, o respeito às regras não escritas do jogo.

As métricas são como fotografias: capturam um instante congelado no tempo, mas raramente revelam a doença que se alastra sob a pele. Elas nos diziam que o edifício era sólido, mas eram incapazes de medir as rachaduras que se formavam nos alicerces do respeito, da verdade e da moderação.

A lição que os eventos de hoje nos ensinam é brutalmente clara: a democracia não é uma pontuação em um ranking. É um hábito. Uma prática diária. Uma convicção que, quando deixa de ser exercida, atrofia.

O Apodrecimento Silencioso: Hannah Arendt e os Sinais Ignorados

É aqui que a voz de Hannah Arendt ecoa com uma precisão quase profética. A filósofa que dissecou as origens do totalitarismo nos ensinou que os grandes colapsos democráticos raramente começam com uma explosão. Eles se iniciam com o lento e metódico apodrecimento da linguagem, com a atomização dos cidadãos e com a aceitação gradual do que antes era inaceitável.

Os sinais estavam todos lá, visíveis a olho nu: o desprezo pela imprensa, a deslegitimação de processos eleitorais, a transformação de adversários políticos em “inimigos do povo”, a exigência de lealdade pessoal acima da lealdade institucional.

Cada um desses atos era um pequeno teste. Um balão de ensaio para medir até onde a apatia cívica permitiria que se fosse.

O que vemos hoje nas ruas americanas é a resposta tardia, mas não perdida, a essa pergunta que Arendt nos legou: quando o inaceitável se torna rotina, quem ainda lembra de dizer “não”?

A Democracia como Vigilância Global

As manifestações “No Kings” transcendem as fronteiras americanas. Não são apenas um assunto interno: são um evento de significado universal. A luta pela alma da democracia em uma nação líder reverbera por todo o planeta, pois o sucesso de uma narrativa autoritária em um lugar legitima e encoraja seus imitadores em todos os outros.

Apoiar esses milhões de cidadãos nas ruas não é solidariedade distante. É reconhecimento de um compromisso mútuo e de uma responsabilidade compartilhada. A democracia não é um bem que se possui, mas uma vigilância que se monta em conjunto.

Proteger a democracia americana hoje é proteger a ideia de democracia em todos os lugares — inclusive aqui, no Brasil. É entender que a liberdade é um ecossistema interdependente, onde a doença em uma parte vital ameaça a saúde do todo.

O Eco que Permanece – No Kings

A grande lição que emerge deste 14 de junho de 2025 talvez seja esta: a proteção da democracia não pode ser terceirizada para as instituições, para os índices ou para os políticos. Ela pertence, em primeira e última instância, ao cidadão disposto a ir para a rua e, com a força de sua presença e de sua voz, lembrar aos que governam a mais fundamental de todas as verdades.

“No Kings”. Sem Reis.

Duas palavras que ecoam como um mantra antigo, redescoberto. Duas palavras que carregam em si toda a sabedoria de quem entende que a liberdade não é um direito natural, mas uma conquista diária.

E talvez seja exatamente isso que o mundo precisava ouvir hoje: que ainda existem vozes capazes de gritar, em uníssono, que alguns tronos não devem jamais ser erguidos.

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