
Lembro-me vividamente do calor úmido de Maputo, em Moçambique, durante uma negociação que, no papel, parecia o futuro. A pauta era um projeto para gerar energia elétrica limpa a partir de biomassa local. Do outro lado da mesa, representantes de um consórcio europeu falavam com entusiasmo sobre “parceria”, “sustentabilidade” e “desenvolvimento”. A promessa era luminosa: transformar recursos locais em autonomia energética.
O diabo, como sempre, não estava na promessa, mas nos anexos do contrato. Foi ali, em meio a cláusulas técnicas sobre patentes de eficiência e controle da distribuição, que a verdadeira natureza do acordo se revelou. Moçambique entraria com a matéria-prima, a terra, o trabalho. A tecnologia, o controle e, em última instância, o poder, permaneceriam nas mãos do consórcio. Não era uma parceria, era um arrendamento sofisticado da soberania do país em troca de kilowatts.
Saí daquela sala com uma clareza visceral que livro algum de relações internacionais havia me dado: a soberania, no mundo moderno, não é apenas demarcada por fronteiras no mapa, mas pela posse da infraestrutura por onde flui a realidade.
Hoje, essa lembrança me assalta com uma força renovada ao observar a ascensão da Inteligência Artificial. A usina de biomassa de ontem é o data center de hoje. A discussão sobre o “compute power” — a capacidade de processamento necessária para treinar e operar os grandes modelos de IA — não é um debate para especialistas em tecnologia. É a mais importante conversa geopolítica do nosso tempo. Estamos erguendo, em silêncio, um novo muro global. Um muro invisível, feito não de concreto, mas de silício e de acesso.
A Gramática do Poder no Século XXI
A notícia de que o mundo se fratura entre as nações que possuem e as que não possuem capacidade computacional massiva não deveria ser uma surpresa. É a reedição de uma velha história com um novo protagonista. Onde antes disputávamos rotas de especiarias, reservas de petróleo ou o controle dos mares, hoje a contenda é pelo acesso a GPUs da Nvidia e pela construção de mega data centers que consomem a energia de cidades inteiras.
A concentração desse poder é brutal e definidora. Estados Unidos e China não estão apenas liderando uma corrida tecnológica; eles estão se tornando os arquitetos dos sistemas operacionais do futuro. Seus modelos de IA, treinados predominantemente com dados e nos idiomas de suas esferas de influência, não são ferramentas neutras. São artefatos culturais. Uma IA que “pensa” em mandarim ou em inglês californiano jamais compreenderá a profundidade da saudade brasileira ou a complexidade de um conceito de comunidade africana.
O que estamos testemunhando é a potencial colonização da imaginação. Quando uma empresa ou um país precisa alugar o cérebro digital de uma potência estrangeira para resolver seus próprios problemas, ele não está apenas pagando por um serviço. Está aceitando, implicitamente, a visão de mundo embutida naquele cérebro. É uma dependência sutil, porém profunda.
A Soberania como Serviço (SaaS)
Claro, o contra-argumento é sedutor e veste a roupagem da eficiência. “Para que construir uma infraestrutura caríssima se posso alugá-la na nuvem?”, questiona o pragmático. A nuvem, afinal, parece democrática. Com um cartão de crédito, uma startup em Nairóbi ou um pesquisador em Córdoba podem, teoricamente, acessar o mesmo poder de uma empresa no Vale do Silício.
Mas essa é uma liberdade condicional. É a liberdade do inquilino, não do proprietário. Ele pode usar a casa, mas não pode mover as paredes, e pode ser despejado a qualquer momento. A dependência de data centers estrangeiros coloca a inovação, a segurança de dados e a estratégia de desenvolvimento de um país inteiro nas mãos de conselhos de administração e de políticas governamentais alheias. É a transformação da Soberania Nacional em Sovereignty as a Service — um serviço que pode ser reajustado, limitado ou cancelado conforme os interesses de quem controla os servidores.
O professor argentino que vê seus melhores alunos partirem para o exterior por falta de GPUs não lamenta apenas a perda de talentos. Ele lamenta a perda de futuros possíveis, de histórias que seu país não poderá mais contar por si mesmo.
O Desafio de Construir a Própria Voz
Então, estamos condenados a este novo apartheid tecnológico? Talvez não. A emergência da “IA soberana” como objetivo estratégico para nações como Índia, Brasil e blocos como a União Europeia é mais do que uma corrida armamentista tecnológica. É um ato de resistência cultural. É a afirmação do direito de construir uma inteligência que reflita seus próprios valores, resolva seus próprios problemas e fale suas próprias línguas.
Isso nos leva a um desafio prático, um convite à ação que transcende governos e recai sobre cada líder, cada criador, cada pensador. A questão fundamental não é apenas “como podemos ter mais GPUs?”, mas sim “que tipo de inteligência queremos construir?”.
Proponho um exercício mental: se você tivesse acesso a todo o poder computacional do mundo por 24 horas, que pergunta faria? Que problema, profundamente local e humano, você tentaria resolver? Não o problema de otimizar cliques ou de gerar mais um conteúdo viral, mas algo que curasse uma ferida específica da sua comunidade, que resgatasse um conhecimento perdido da sua cultura, que abrisse uma nova possibilidade para o seu povo.
A resposta a essa pergunta é o embrião de uma IA verdadeiramente soberana.
O muro invisível do compute está sendo erguido, e ele definirá a paisagem do poder por décadas. Ignorá-lo é aceitar um lugar de espectador na construção do futuro. A verdadeira batalha não é apenas pelo acesso ao silício, mas pelo direito de continuar a ser o autor da própria história. E essa é uma disputa da qual ninguém, em sã consciência, pode se dar ao luxo de se abster.
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