O Pássaro, a Suma Teológica e o Silêncio Filosófico

Memórias de um Silêncio Filosófico

Pássaro de origami preto pousado sobre fragmentos da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, representando a relação entre razão filosófica e fé cristã.
Sobre os fragmentos da tradição, o pensamento alça voo.

Algumas reflexões não nascem da urgência de um debate público, mas da ausência de uma conversa íntima.

Há algumas semanas, recebi o convite generoso de um amigo para participar de um podcast sobre a legalização do aborto. Agradeci sinceramente. Mas, em vez de aceitar o debate, percebi que o convite reabriu outra inquietação, muito mais antiga.

Lembrei-me do meu avô Conrado, um homem de fé robusta e intelecto afiado, cuja vida foi marcada pelo estudo apaixonado da Suma Teológica de São Tomás de Aquino. Foi ele quem, ainda na minha infância, me apresentou Platão e Aristóteles, plantando em mim as primeiras sementes da filosofia. Durante anos, nossas conversas exploraram a harmonia entre fé e razão, entre a inteligência humana e os mistérios divinos.

Mas, quando entrei na Faculdade de Direito da USP e me deparei com Kant e, depois, com Rawls, esse diálogo silenciosamente se interrompeu. Meu avô faleceu no final do meu primeiro semestre. Nunca pude perguntar-lhe o que pensava do imperativo categórico ou do véu da ignorância. Nunca soube se veria em Kant um aliado ou um rival da fé. Carrego até hoje essa conversa não realizada como um pequeno vazio, feito mais de perguntas do que de respostas.

Alguns anos depois, minha tia me deu um presente tocante: as páginas corroídas da Suma Teológica que pertencera ao meu avô, danificadas pelo tempo e por cupins, cuidadosamente recompostas em uma moldura. No centro, um pássaro de origami preto, um aceno ao nosso sobrenome, Waldvogel, “pássaro da floresta”, repousa entre os fragmentos. Como se dissesse: mesmo que as palavras se percam, algo nelas ainda alça voo.

Entre Atenas e Jerusalém: A Tensão que Nunca Se Dissolveu

Foi nessa memória que me refugiei para pensar no convite sobre o aborto. A questão moral que ele envolve não é nova. Ela ecoa uma tensão antiga, formulada por Sócrates no Dilema de Eutífron: será o bem aquilo que os deuses amam, ou os deuses amam aquilo que já é bom em si?

A tradição filosófica grega optou pela segunda resposta. Para Platão, Aristóteles e Sócrates, a bondade não dependia da vontade divina, mas era um princípio objetivo, acessível pela razão humana. A moralidade, nesse horizonte, era autônoma e universal.

Séculos depois, a tradição cristã reinterpretou essa herança. Como admirador da intelectualidade da Igreja, vejo com respeito o esforço monumental de Santo Agostinho e Tomás de Aquino em traduzir a ética grega à luz da revelação cristã. As Formas platônicas tornaram-se ideias divinas, e o Bem supremo passou a ser o próprio Deus. A razão não foi anulada, mas subordinada à fé.

Durante mais de mil anos, moral e teologia foram inseparáveis no Ocidente. A ética tornou-se, em grande parte, um capítulo da teologia cristã.

A Modernidade e o Projeto da Autonomia Ética

Com a modernidade, surgiu o esforço por recuperar a autonomia da razão. Kant propôs que a moralidade não precisava de Deus como fundamento. Bastava a razão prática, capaz de formular o imperativo categórico como princípio universal da ação ética.

Rawls, séculos depois, transformou essa autonomia em projeto político. Seu véu da ignorância propõe que as regras de justiça devem ser elaboradas como se ninguém soubesse qual posição ocupará na sociedade. É um convite à imparcialidade, análogo ao exercício socrático de suspender preconceitos para buscar a verdade.

Hoje, vivemos sobre essa base. Nossas democracias liberais, nossos direitos fundamentais, nossa separação entre Igreja e Estado, tudo isso repousa, de algum modo, sobre esse pacto tácito entre Kant e Rawls.

Tensões que Persistem

Mas o Ocidente não resolveu totalmente a tensão entre razão e fé. No espaço público, buscamos justificações universalmente acessíveis, kantianas e rawlsianas. No espaço íntimo, muitos ainda fundamentam sua moralidade em convicções religiosas.

Essa cisão emerge com força em temas como o aborto. De um lado, a defesa kantiana da vida como um valor inegociável. De outro, a autonomia rawlsiana da mulher sobre seu próprio corpo.

Não vejo, sinceramente, uma solução conceitual definitiva para essa tensão. E talvez isso diga mais sobre a complexidade da vida humana do que sobre a insuficiência da filosofia.

O Aborto e os Limites da Minha Voz

Por isso, quando penso em participar de um debate público sobre aborto, percebo algo desconfortável: conheço formalmente os argumentos, mas não vivi a experiência concreta que eles tentam traduzir. Nunca enfrentei o dilema visceral que tantas mulheres enfrentam.

Meu avô talvez dissesse que a razão precisa ser iluminada pela experiência, e que sem caridade a justiça se torna fria. Kant lembraria que princípios universais não dependem de vivência pessoal. Rawls sugeriria que, no espaço público, devemos argumentar a partir da razão e não da experiência privada.

Ainda assim, reconheço que, neste tema, minha razão hesita. Não porque falte convicção filosófica, mas porque falta-me a vivência direta que me autorizaria a falar com segurança.

Por isso, optei por não aceitar o convite. Não por medo do debate, mas por respeito ao tema e às pessoas que ele afeta.

Fragmentos de Uma Conversa Imaginária

Talvez este texto seja, no fundo, uma carta ao meu avô. A conversa que nunca tivemos sobre Kant e Rawls, sobre autonomia e revelação, sobre dilemas morais que atravessam séculos e resistem a soluções fáceis.

Foto antiga de Leandro Waldvogel, ainda bebê, sendo erguido com um sorriso por seu avô Conrado, em meio a um bambuzal. A imagem simboliza a memória humana e a transmissão de legado entre gerações.

Assim como o pássaro de origami repousa sobre as páginas fragmentadas da Suma, minha razão tenta pousar sobre tradições que o tempo desgastou, mas que ainda sustentam o voo do pensamento.

Se um dia eu tiver que assumir uma posição pública sobre temas como o aborto, espero fazê-lo com a prudência de quem conhece seus limites e com a coragem de quem, apesar deles, não foge da responsabilidade. Por ora, escolho o silêncio reflexivo. Não como fuga, mas como sinal de respeito.

Talvez isso seja o que Sócrates chamaria de o início da sabedoria.

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