Entre a Corrida pela Dominância e a Busca por Sentido, qual narrativa estamos construindo para o futuro?

Lembro-me vividamente do calor úmido de Maputo, em Moçambique, durante uma negociação que, no papel, parecia o futuro. A pauta era um projeto para gerar energia limpa a partir de biomassa local. Do outro lado da mesa, representantes de um consórcio europeu falavam com entusiasmo sobre “parceria”, “sustentabilidade” e “desenvolvimento”. A promessa era luminosa.
O diabo, como sempre, não estava na promessa, mas nos anexos do contrato. Foi ali que a verdadeira natureza do acordo se revelou. Moçambique entraria com a matéria-prima, a terra, o trabalho. A tecnologia, o controle e, em última instância, o poder, permaneceriam nas mãos do consórcio. Não era uma parceria; era um arrendamento sofisticado da soberania do país em troca de kilowatts.
Saí daquela sala com uma clareza visceral que livro algum de relações internacionais havia me dado: a soberania, no mundo moderno, não é apenas demarcada por fronteiras no mapa, mas pela posse da infraestrutura por onde flui a realidade.
Hoje, essa lembrança me assalta com uma força renovada ao observar o recém-lançado “America’s AI Action Plan”. A usina de biomassa de ontem é o data center de hoje. A discussão sobre o “compute power” e o controle dos modelos de linguagem não é um debate técnico. É a mais importante conversa geopolítica do nosso tempo. E, como naquele acordo em Maputo, precisamos aprender a ler as intenções por trás das promessas.
O Mapa do Poder e a Bússola da Humanidade
O plano americano é, sem dúvida, um mapa extraordinariamente bem desenhado. É uma obra-prima de estratégia geopolítica, articulando com clareza os caminhos para consolidar a dominância tecnológica, econômica e militar na era da Inteligência Artificial. Ele responde com precisão ao “o quê” e ao “como”.
Contudo, um mapa nos diz como chegar a um destino, mas não por que devemos ir — ou se o destino vale a pena. É aqui que precisamos de uma bússola. Uma bússola que aponte não para o norte geográfico do poder, mas para o norte moral da nossa humanidade. A filosofia do Story-Intelligence se propõe a ser essa bússola: uma ferramenta não para competir com o mapa, mas para garantir que a jornada não nos faça perder a alma no processo.
Este artigo se propõe a analisar os pilares do plano americano não como um manual técnico, mas como o que ele realmente é: uma peça narrativa poderosa sobre o futuro que uma superpotência deseja construir para si e, por consequência, para o mundo.
A Anatomia do Plano: Uma Análise Crítica em Quatro Eixos
Eixo I: A Narrativa da “Corrida” — Eficiência sem Propósito?
O plano não hesita em sua linguagem: enquadra a IA como uma “corrida para alcançar a dominância global”. A métrica é a vitória; o objetivo, a supremacia. Essa moldura, embora estrategicamente eficaz, arrisca esvaziar a tecnologia de seu potencial mais profundo. A pergunta central que venho propondo não é “como competir com a IA?”, mas “como colaborar mantendo nossa alma intacta?”.
A verdadeira vantagem na era digital não virá da tecnologia em si, mas de como ela é orquestrada com propósito, sensibilidade e estratégia. Ao focarmos unicamente na competição, corremos o risco de construir a máquina mais veloz do mundo, sem saber para onde estamos indo. O alerta do Vaticano sobre a necessidade de infundir um “suplemento de alma” na tecnologia ecoa aqui: estamos criando ferramentas para ampliar nossa compaixão e sabedoria, ou apenas para vencer a próxima batalha?
Eixo II: A Ética da Velocidade — Inovação sem Responsabilidade?
Talvez o ponto mais revelador do plano seja sua defesa agressiva da “remoção de burocracias e regulações onerosas”. Mais especificamente, a orientação para remover referências a Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), desinformação e mudanças climáticas dos frameworks de risco da IA.
Isso não é um detalhe técnico. É uma declaração de valores. Sob a lente do pilar da Ética do Story-Intelligence, “toda narrativa é poder, e todo poder exige responsabilidade”. A tecnologia, como venho insistindo, é um espelho magnificador de nossas intenções — ou da ausência delas. Ao remover salvaguardas éticas em nome da velocidade, o plano arrisca industrializar os vieses que já corroem nossas sociedades. Afinal, os dados com os quais treinamos as IAs são tudo, menos neutros. Eles carregam nossa história, nossos preconceitos, nossas feridas. Inovação sem responsabilidade não é progresso; é apenas imprudência em alta velocidade.
Eixo III: O Humano no Centro — Amplificação ou Adestramento?
O plano acerta ao propor a requalificação de trabalhadores para que a IA “complemente seu trabalho, não o substitua”. Há um alinhamento claro aqui com a minha convicção de que a IA não veio para nos diminuir, mas para nos libertar para sermos mais humanos.
No entanto, é preciso aprofundar a questão. O foco do plano parece ser o desenvolvimento de habilidades para operar as novas ferramentas. A filosofia do Story-Intelligence, por outro lado, defende o cultivo de competências que a IA não pode replicar: a arte de fazer as perguntas certas, a inteligência contextual para ler nuances, a curiosidade interdisciplinar para conectar o que parece desconexo.
A educação para a era da IA não pode ser um mero adestramento técnico. Deve ser um convite para nos lembrarmos do que realmente importa e do que só nós podemos fazer: sentir, criar, liderar e dar sentido ao caos.
Eixo IV: A Geopolítica da Imaginação — Soberania ou Colonização?
O plano visa tornar os EUA o “principal exportador de tecnologia de IA” para moldar os padrões globais. Aqui, a memória de Maputo retorna com urgência. Quando uma nação depende de modelos de IA estrangeiros, ela não está apenas importando software; está importando visões de mundo embutidas no código.
É o que chamo de “colonização da imaginação”. Corremos o risco de adotar soluções que não dialogam com nossa realidade, nossa cultura, nossas dores específicas. A busca por uma “IA soberana” torna-se, portanto, um ato de resistência cultural, a afirmação do direito de construir uma inteligência que reflita nossos próprios valores e resolva nossos próprios problemas.
O Espelho Brasileiro: Implicações e Escolhas Estratégicas
O plano americano não é um documento abstrato. Ele é o novo clima global, e o Brasil precisa decidir como vai navegar nesta tempestade. A escolha que se apresenta é clara: seremos consumidores passivos de uma tecnologia moldada por outras realidades ou seremos construtores de nossa própria voz?
Nossas iniciativas, como o PL 2338/23 e a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (PBIA), são os primeiros traços de uma busca por essa soberania narrativa. O objetivo não pode ser simplesmente “vencer a corrida”, mas construir uma IA que nasça de nossas necessidades e que fale a nossa língua, com nosso sotaque, com nossa alma.
O maior risco para nós é o da “inteligência fora do lugar” — a aplicação acrítica de modelos treinados no Norte Global que, em vez de resolverem nossos problemas, podem acabar por amplificar nossas desigualdades históricas.
Conclusão: A Pergunta que o Mapa Não Responde
Retornamos, ao fim, à metáfora inicial. O “America’s AI Action Plan” é um mapa impressionante. Ele detalha com uma clareza brutal o “o quê” e o “como” da dominação tecnológica. É uma aula de poder e visão estratégica.
No entanto, ele deixa em aberto a pergunta mais crucial, aquela que define a qualidade do nosso futuro e que nenhum mapa pode responder: Para quê?
Qual o propósito maior por trás dessa corrida desenfreada? Qual a narrativa que estamos, coletivamente, construindo? O futuro não será definido pela nação que criar a IA mais rápida, mas pela sociedade que souber fazer as perguntas mais sábias e cultivar uma tecnologia que sirva ao florescimento humano.
A verdadeira soberania, no fim das contas, não reside no silício, mas na capacidade de mantermos agência sobre nossas próprias histórias. O convite é para que o Brasil, e cada um de nós, se torne um autor consciente deste próximo capítulo. A história aguarda nossa próxima linha.